Em homenagem a Feira do Livro deixarei aqui um "Conto de Verão" do Luis Fernando Veríssimo muito engraçado...
O Deus Kramatzal
Sakiri era uma das cinco filhas do chefe Bubua, rei da ilha Maaboa.
O surfista Dudu foi atrás das ondas da ilha, mas, longe da areia, encontrou a filha do rei.
Dudu convenceu os pais de que estudar não era com ele.
Não me amarro, entende?
O pai do Dudu ainda tentou dissuadi-lo de largar a escola.
- Eduardo, fica só pelo diploma. Só pra ter cela especial.
- Meu negócio é outro. O negócio do Dudu era surfar.
E como Dudu era filho único e sempre conseguia o que queria, saiu a surfar pelo mundo.
Só entrava em contato com a família para pedir dinheiro. Volta e meia mandava um postal de um lugar estranho, dizendo que estava bem, saúde perfeita. Saúde com cê-cedilha.
Mas um dia telefonou para avisar que estava voltando, e com uma surpresa.
* * *
A surpresa era Sakiri. Ou "Princesa Sakiri", como ele a apresentou à família boquiaberta. Sakiri era uma das cinco filhas do chefe Bobua, rei da ilha Maaboa, uma das Epírades Ocidentais. Ela e Dudu tinham se casado numa cerimônia à beira de um vulcão, e a festa do casamento durara três dias. Dudu podia escolher entre as cinco filhas do rei e escolhera a mais bonita. E Sakiri era mesmo linda. E olhava para o Dudu com adoração, como se Dudu fosse um deus. E a cada coisa que o Dudu dizia, seus olhos brilhavam, maravilhados.
- Tô bem de mina, hein galera?
E Sakiri quase se desmanchava.
* * *
Sakiri falava um pouco de inglês, e foi através dela que a família ficou sabendo mais sobre aquele casamento insólito. Dudu chegara em Maaboa de barco, vindo de outra ilha. Ouvira dizer que as ondas dali eram ótimas para surfar. Na chegada, recebido por nativos na praia, dissera as exatas palavras que, segundo uma velha lenda, seriam ditas pelo deus Kramatzal quando voltasse à Terra. O deus Kramatzal poderia voltar à terra em qualquer forma e de qualquer cor: suas palavras é que o identificariam. E Dudu dissera as palavras, as exatas palavras, que o identificavam como o deus Kramatzal! Que, segundo a lenda, casaria com uma das filhas do rei, à sua escolha, e ficaria na ilha para salvá-la, como já tinha acontecido no passado.
* * *
- Dudu , o que foi que você disse quando chegou na praia?
- Não me lembro.
Acho que foi: "E aí, macacada?" Por quê?
Dudu não tinha idéia do que causara todo aquele rebuliço, na sua chegada à ilha. A procissão nos ombros dos nativos até a presença do rei Bobua e a escolha de uma das suas filhas para casar, as homenagens e os presentes que recebia dos nativos a toda hora... Como era filho único, acostumado a ser mimado, aceitara tudo aquilo com naturalidade. Estava agradando, era só isso. Ficou surpreso ao saber que era considerado um deus redivivo. Kramaoquê?
- E eu que pensei que era tudo hospitalidade, pô.
* * *
A muito custo, a família convenceu Dudu a ficar em casa, com sua nova mulherzinha. O pai lhe conseguiria um emprego, e sempre que quisessem eles poderiam passar algumas semanas em Maaboa, onde as ondas eram ótimas para surfar. Mas um dia Sakiri viu no Jornal Nacional que um vulcão na ilha de Maaboa, uma das Epírades Ocidentais, estava ameaçando entrar em erupção, e anunciou que precisava voltar para a sua ilha imediatamente - e Dudu precisava ir com ela. Não adiantou a família dizer que aquilo era loucura, os dois tinham que voltar a Maaboa. Com urgência.
* * *
Mesmo quando foi levado até a beira do vulcão fumegante, Dudu não se deu conta do que esperavam dele. Se não dissesse a palavra mágica que fizesse a lava borbulhante retroceder, seria jogado dentro do vulcão, como já acontecera com o deus Kramatzal em sua outra encarnação. Dudu olhou dentro do vulcão, onde a lava borbulhante crescia cada vez mais e em pouco tempo transporia as bordas da cratera e arrasaria com a ilha e, provavelmente, todas as Epírades Ocidentais, e exclamou:
- Cacete!
Deu certo.
A lava borbulhante retrocedeu, o vulcão serenou, a ilha e o arquipélago foram salvos.
* * *
Os dois aproveitaram para ficar uns dias em Maaboa. Sakiri reviu sua família, Dudu pegou algumas ondas ótimas e o rei Bobua deu várias indiretas sobre a possibilidade de um neto, já que precisa de um herdeiro.